Há algum tempo venho refletindo sobre as questões relacionadas com o que chamo de “preservação digital do conhecimento tradicional“, que chamaremos aqui neste artigo de “PDCT“. Desde meu envolvimento inicial com o tema, acumulei muito aprendizado e algumas percepções, baseadas nas relações com pesquisadores e diferentes atores do governo, ONGs, iniciativas e mesmo lideranças de comunidades tradicionais. Acumulei também algumas inquietações, mas que reconheço que podem ser absolutamente pessoais. Como dizia Mark Twain, “I’ve had a lot of worries in my life, most of which never happened“.
De qualquer forma, uma inquietação que surgiu, e que gostaria de compartilhar aqui, é a dificuldade em avançar nas definições e ações práticas necessárias à PDCT, considerando o aspecto técnico. Afinal, quais são os obstáculos para que uma proposta clara, objetiva, robusta e prática para a PDCT se consolide? Uma visão que surgiu, e que gostaria de compartilhar aqui, é a das dificuldades de interações entre as agendas envolvidas: acadêmica, política e técnica.

Na minha percepção do cenário deste domínio, temos, pelo menos, estas três agendas com forte relação e interrelação com a PDCT. Vamos a alguns detalhes destas agendas:
A Agenda Acadêmica
A agenda acadêmica relacionada com PDCT permeia várias áreas de conhecimento, notadamente na Ciência da Informação, Etnobiologia e Bioeconomia, só para destacar algumas.
A agenda acadêmica, em resumo, envolve a pesquisa sobre temas relacionados, com sua produção científica e formação de profissionais e novos pesquisadores, focados na geração de novos conhecimentos, modelos e teorias, fundamentais para o avanço na compreensão do conhecimento tradicional e da sua preservação. Seus atores principais estão na academia – universidades, institutos de pesquisa, ONGs e mesmo em comunidades tradicionais.
A Agenda Política
A agenda política, por sua vez, lida principalmente com questões de soberania, governança, ética e direitos sobre o conhecimento tradicional. A agenda traz uma bagagem de necessidade histórica de reparação e reconhecimento, aliada a preocupações absolutamente legítimas do uso do conhecimento tradicional associado sem a devida, e hoje legal, repartição de benefícios; e com a possibilidade do retorno do colonialismo, agora no formato digital. Seus atores principais estão no governo, nas comunidades, associações e lideranças comunitárias.
A Agenda Técnica
Envolve o “como” realizar o PDCT. Questões relacionadas com infraestrutura, padrões, modelos e estruturas de dados, metodologias e tecnologias de preservação e acesso de dados, informação e conhecimento. Lida com o enorme desafio de representar adequadamente contextos culturais sem distorção ou simplificação, e de lidar com valores intangíveis como o caráter sagrado ou restrito de certos saberes.
A inquietação
Esta visão resumida, incompleta e imperfeita, serve apenas para ilustrar a visão que gostaria de colocar na mesa aqui: a de que, essencialmente, as relações entre estas agendas, com suas idiossincrasias, possuem arestas ainda agudas e, talvez, diferentes visões e prioridades.
A agenda técnica, na qual estou inserido, é dependente de modelos adequados de representação do conhecimento tradicional, que devem vir da agenda acadêmica, e da legitimação dessa representação, fornecida pelas lideranças comunitárias e detentores desse conhecimento. Além disso, a agenda técnica também requer as definições de governança sobre os dados (em sua geração, gestão, acesso e uso), estabelecidas pela agenda política. É neste âmbito político que o diálogo entre os diferentes atores deve consolidar uma visão comum, assegurando que todos estejam confortáveis com a forma de representação e preservação do conhecimento tradicional.
Penso que o diálogo entre estas agendas precisa de uma melhoria significativa. Isso é crucial, especialmente para garantir que as prioridades de cada grupo sejam corretamente percebidas e encaminhadas pelas demais.
Esta inter-relação representa, de fato, em minha visão, uma interdependência onde a falta ou insuficiência no diálogo entre as partes acaba por imobilizar qualquer avanço no aspecto técnico, acadêmico ou político.
O que falta afinal? Um “maestro” regendo esta orquestra? Talvez não. Afinal, não há “partitura” a seguir. Uma banda de jazz não tem maestro porque adota um modelo de liderança compartilhada e responsabilidade individual. Com foco na improvisação e interação entre músicos talentosos, a banda de jazz só é bem-sucedida pela capacidade da escuta mútua entre os instrumentistas.
Penso que estamos mais para uma banda de jazz, pois nesta minha interação com as diferentes agendas, tenho encontrado pessoas absolutamente talentosas e penso que não há uma “partitura” a seguir. É tudo muito novo e estamos evoluindo, como na improvisação de uma banda de jazz. O que parece faltar, então, é um cuidado maior em ouvir o que os outros estão tocando.
Finalizando, ilustrando o que é possível atingir com pessoas talentosas, aí embaixo está meu grupo de jazz predileto e uma das músicas prediletas. Aproveite!