Preservação do Conhecimento Tradicional Sobre o Uso das Plantas – pensando “fora da caixinha”

Fonte: https://naturaljustice.org/publication/the-abs-picture-box/2_traditional-knowledge-a3/

Há algum tempo tive a oportunidade – e o privilégio – de me envolver com {iniciativas, alunos, pesquisadores, conjuntos de dados} relacionados com o que é chamado de “conhecimento tradicional no uso das plantas”. Seja para confecção de artefatos, seja para o uso medicinal, tenho aprendido bastante com a Dra. Viviane Kruel, e suas alunas Nicky van Luijk, Luisa Ridolph Tostes Braga e Camila Nascimento Dantas. Uma experiência realmente enriquecedora e fascinante adentrar para um domínio tão complexo e desafiador, do ponto de vista da arquitetura de dados. Desta experiência, algumas percepções já se consolidaram, e outras, sob a forma de ideias, andam me assombrando nas noites frias de outono.

Antes de ir direto ao ponto, no aspecto de organização dos dados, preciso dizer que a ideia é polêmica (uma forma elegante de dizer que é “maluca”), e que arrisco perder os pouquíssimos amigos taxonomistas que tenho. Aliás, se você é taxonomista e tem um coração fraco, sugiro que pare de ler agora e volte para a Rodriguésia. Para quem continua por aqui, apertem seus cintos de segurança e vamos em frente!

Tradicionalmente (ironia à parte…), organizamos informação sobre as plantas de um ponto de vista que vou chamar agora de “acadêmico”, onde o nome científico é a “raiz”. O protagonista. O mais importante. O último biscoito do pacote. Qualquer atributo de uma espécie, por exemplo, seu nome vernacular e seu uso, são associados ao nome científico.

Nenhuma novidade ou polêmica até agora. Tudo calmo.

Agora, pense comigo: quando a um pesquisador vai em uma comunidade tradicional e escuta da Dona Maria, que do alto dos seus oitenta e tantos anos declara: “tem aquela plantinha de florzinha roxa que o chá é muito bom pra dor de cabeça

Pronto. Quebrou o modelo.

Perceba que para qualquer, absolutamente qualquer, comunidade tradicional, o “tal” do nome científico é irrelevante! Não tem serventia alguma. Tentar preservar conhecimento tradicional usando uma estrutura “acadêmica”, centrada no nome científico, é abdicar de registrar a realidade do conhecimento tradicional. O modelo (p.ex. de um banco de dados) deve estar em consonância com o mundo real que ele quer modelar, e o nome científico simplesmente não pertence a este mundo real – o mundo do conhecimento tradicional. Tentar preservar conhecimento tradicional com o modelo acadêmico é, em minha opinião, como tentar estrangular alguém com um espaguete.

E agora? O conhecimento tradicional (lato sensu) PRECISA SER PRESERVADO, e com urgência, pois sua transmissão geracional está comprometida, por diversos fatores.

É aí que “pensamos fora da caixinha”, e estamos propondo um modelo alternativo, onde o nome vernacular é “o tal”!

É importante deixar claro que não estamos negando a importância da identificação taxonômica correta de espécies utilizadas por comunidades tradicionais. Essa ponte entre o conhecimento tradicional e acadêmico deve existir, por diversas razões. E o modelo não impede que, eventualmente, no futuro, esta relação entre o nome vernacular (que pode ser “a plantinha de flor roxa” da Dona Maria!) seja associado a um nome científico.

Entretanto, é claro para mim que o modelo centralizado no nome científico não atende a realidade de como o conhecimento tradicional é mantido, transmitido e valorizado nas diferentes comunidades e povos.

Para colocar em escala, publicações recentes indicam que somente para povos indígenas, existem 896 mil indígenas no Brasil, distribuídos em 900 terras indígenas reconhecidas oficialmente. Esses indígenas são divididos em 304 etnias ou povos indígenas diferentes. Essas etnias falam cerca de 274 línguas indígenas, o que representa cerca de 12% das línguas faladas no mundo. Algumas dessas etnias têm apenas algumas famílias, enquanto outras têm populações consideráveis.

Um “problema” com esta escala precisa de soluções urgentes, mas também inovadoras. Esta proposta ainda não está consolidada, e precisamos agregar cabeças para criticar e ajudar a pensar. São todos muito bem vindos! Deixe sua {contribuição, crítica, opinião etc.} aqui embaixo, ou entre em contato conosco!

11 respostas para “Preservação do Conhecimento Tradicional Sobre o Uso das Plantas – pensando “fora da caixinha””

  1. Caríssimos Colegas
    Espero que estejam bem.
    Vim aqui atras do conhecimento do Dalcin, pois atualmente estou estudando a qualidade de dados das macroalgas da base iNATURALIST.
    Fantástico esse debate, porém não achei o aludido artigo do Dalcin citado pela colega. Mas estou no Notebook as 19h de uma sexta-feira e não tenho a visão perfeita. Quanto a essa questão estamos atrasados não….temos que correr enquanto temos indígenas e seus hábitos e culturas ainda não foram descaracterizados, não….
    Um prazer em revê-los.
    Obrigado.
    Abraços
    Pedrini

  2. Olá Dalcin! bom dia! Esta provocação é muito pertinente atualmente e muito necessária. Os modelos atuais não consideram o conhecimento tradicional. Não existem boas práticas bem documentadas para a estruturação/padronização desses dados e informações . Você acha uma boa ideia começar a discutir uma proposta de extensão para estas informações? Abraço e parabéns pelo artigo.

    1. Querida Clara, obrigado pelo comentário. Com o grupo da Viviane estamos procurando avançar em um padrão para sistematização de dados de conhecimento tradicional. Todos são bem-vindos!

  3. Dalcin, tenho acompanhado esse assunto através de você e Viviane & Cia. Essa discussão também vem de encontro, no meu entendimento, do que o Domingos Cardoso tem pensado em relação a “Flora e Funga do Brasil ” e os campos nomes vulgares. Há muito o que trilhar, mas estão lançados os dados. É bom ver emergir esse assunto aqui dentro do JB e ver a empolgação “das meninas”. Abraço…

  4. Querido Dalcin, adorei o tema e principalmente a construção do texto de forma provocativa e prazerosa.
    Eu tenho duas considerações:
    -Concordo com vc que colocar o nome científico como “principal” não seja uma boa ideia. Os povos e comunidades categorizam plantas ou animais geralmente
    pelo “uso”. Se um mesmo táxon produz a mesma substância (ou similar) destinado a determinado uso, muito provavelmente eles denominarão as espécies daquele táxon com um mesmo nome (pode ser o caso do gênero Phyllomedusa, rã kambo). O contrário também imagino que aconteça, quando variedades de uma espécie respondem de formas diferenciadas aos tipos de solo ou clima. Certamente cada variedade terá um nome diferente. Então, deveremos tentar modelar a partir das divisões/classificações realizadas por eles, e só então encontrarmos a nossa referência (nome taxonômico, acredito que nem sempre chegaremos à espécie). Assim, acho boa a sua proposta de iniciar com o nome vernacular. Esse poderá ser relacionado a mais de uma espécie, a um gênero ou mesmo a uma família ou no caso deles denominarem as variedades, mais de um nome poderá levar a uma mesma espécie (acredito que não teremos uma correspondência de um pra um).
    – Mesmo não sendo fácil, precisamos buscar essa correspondência do nome científico (com o CTA), uma vez que existe um uso indevido e não autorizado do patrimônio genético associado ao conhecimento tradicional, tanto em patentes, quanto em produtos diversos. A nossa referência é o nome científico e precisamos dessa relação para apontarmos as espécies para as quais existe conhecimento tradicional associado, e assim evitarmos novas patentes indevidas. Acabou de ser aprovado pelo WIPO – World Intellectual Property Organization um instrumento que exige a informação (a ser dada pelo suposto inventor) se existe conhecimento tradicional associado para determinado invento, e em caso positivo a origem desse conhecimento (https://www.wipo.int/pressroom/en/articles/2024/article_0007.html). E já está previsto que os escritórios de patentes possam consultar bases de dados dos países sobre a existência de conhecimento tradicional associado. O que teremos de referência nesses casos se não o nome científico? Então, essa correlação não é desejável, é necessária, se quisermos não apenas preservar o conhecimento tradicional, mas também garantir a soberânia desse conhecimento pelos povos indígenas e comunidades tradicionais.

    1. Obrigado pelo comentário Keila! São excelentes os pontos levantados, e pela demonstração da complexidade do tema, que não se encerra na estrutura de modelagem dos seus dados, mas também da gestão e governança destes dados e informações. Creio que temos que sair dos nossos “silos” de ideias e ações, e iniciar uma reflexão e discussão ampla e inclusiva sobre o tema.

  5. Meu querido Dalcin, gostei demais dessa provocação! Enxergar o conhecimento a partir da forma como o comunicamos deveria ser mais comum, não é? A visão do conhecimento estruturado e categorizado, como uma taxonomia tradicional tem sua utilidade e obviamente era o que se podia fazer para facilitar o intercâmbio das informações científicas numa época em que isso era feito por cartas manuscritas.
    Porém, os recursos que temos hoje, falando de computação e inteligência artificial, para indexar os dados e acessá-los das formas mais diferentes possíveis, podem conciliar essas duas visões, na minha opinião.
    Saudades, chefe!

  6. Otimo artigo, como sempre. Mas tenho um questionamento: quem esta querendo associar os nomes tradicionais aos nomes acadêmicos? Definitivamente não sao os taxonomistas! Nao sou taxonomista mas convivo com eles. Acho que precisamos conversar com os antropólogos e questionar se não deveriamos proteger o conhecimento tradicional protegendo o detendor desses conhecimentos e suas terras. Proteger o conhecimento tradicional atraves do modelo acadêmico, alem de não me prover uma proteção efetiva, simplesmente é metodologicamente impossivel! Esta é minha opinião. A opinião de quem, ao longo dos ultimos, vem gostando e admirando cada vez mais os povos originários.

    1. Obrigado pelo comentário Marina! Sem dúvida que a generalização foi injusta. Entretanto, alguns com que já conversei são, sim, refratários a uma mudança de paradigma como essa. E, os sistemas de informação que conheço são todos baseados neste modelo “acadêmico”. Além disto, a questão não é só “proteger”, mas preservar e sistematizar, para ser transferido e difundido entre diferentes públicos e gerações. De qualquer forma, uma discussão multi-facetada bem interessante. Obrigado por contribuir.

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