A planta e a espécie

Este conceito de “espécie”, consolidado pelo sistema de classificação e pela nomenclatura binomial de Lineu, foi gravado em mim a “ferro e fogo” desde a época da graduação em biologia. Quando entrei para o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em 1983, este conceito se ampliou, quando fui levado a estudar a família Chrysobalanaceae, guiado pelas mãos do meu orientador, e hoje amigo, Dr. Haroldo de Lima. Assim, acreditem em mim, sei abstrair o conceito de “espécie”.

No final dos anos 80, ganhei meu primeiro computador – um TK-85 – e fui levado a fazer um curso de modelagem de dados, já em 1991, onde aprendi a abstrair e “modelar entidades”. “Modelar entidades” acaba também fazendo parte da gente que pensa bancos de dados e sistemas de informação e acabamos enxergando as coisas de forma diferente. Nestes pensamentos, recentemente, um modelo lógico se apoderou da minha mente, e gostaria de compartilhá-lo com vocês.

Vamos imaginar que tenhamos uma “entidade física”, que podemos tocar, no mundo real, representada por aquele objeto ilustrado ali em cima, do lado esquerdo. Creio que podemos concordar que parece ser a foto de uma planta, mostrando seus frutos vermelhos. Nada complicado até agora.

Em um exercício de modelagem conceitual de bancos de dados, e com a minha modestíssima bagagem taxonômica, poderia sacramentar, sem medo de errar, que teríamos aí uma entidade que chamaríamos de “espécie”. Ainda nada de novo ou excepcional. Nestes pouco mais de 30 anos lidando com bancos de dados taxonômicos, incluindo aí minha dissertação de doutorado, estou seguro de que estamos defronte da clássica entidade lógica “espécie”, que, nada mais é, que uma representação lógica, sob a forma de um modelo, da entidade física que existe no mundo real e, neste caso, tem frutos vermelhos, e “coisas” brancas e pretas saindo de dentro deste fruto.

Neste exercício, costumamos listar “atributos” associados a esta entidade, que nada mais são que características desta entidade “espécie”. Algo como nome científico, família à qual pertence e até, qual sua “filotaxia“. Características importantes da entidade “espécie”.

Este conceito “sistemático” de uma espécie, foi possível de povoar meu modelo lógico, como uma entidade, porque não estamos em, por exemplo, 1.500 D.C., quando nos ensinaram que nosso Brasil foi “descoberto”. Se quisesse abstrair este conceito, antes de Lineu e sua proposta genial (porém imperfeita) de organização, acho que chamaria esta entidade de “planta”.

Na verdade, como já perceberam pelas minhas postagens anteriores, fui recentemente arrastado e jogado em uma “máquina de lavar intelectual” que é o conhecimento tradicional. E, sem dúvida alguma, por conta disso, tenho enxergado as coisas de forma diferente e revendo, não só conceitos, mas modelos que foram baseados apenas em um lado da história.

É hora de pegar as foices e ancinhos porque alguns de vocês vão querer me queimar em praça pública. Mas, me ajudem a pensar:

  • “Espécies” são abstrações acadêmicas, com conjuntos de características voltados para “classificá-las” em caixinhas cada vez menores e mais precisas;
  • “Plantas”, por sua vez, fazem sentido desde que a humanidade sentiu fome ou se sentiu desconfortável. Suas “classificações” são generosas e seguem uma lógica universal – a lógica da utilidade;
  • As “plantas” têm vários nomes válidos. A “espécie” só tem um nome científico aceito e, eventualmente, uma penca de sinônimos;
  • Me arrisco a dizer que toda a “planta” tem uma serventia. A “espécie”, nem sempre tem ou é conhecida;
  • O conjunto de atributos (características) de uma “planta”, caso citadas pelas comunidades que a conhecem e usam, difere do conjunto de atributos de uma “espécie”, citado pelo taxonomista que a estuda. Esta mesma entidade do mundo real tem duas visões distintas, que devem ser representadas em seus modelos conceituais;
  • Por fim, mas longe de encerrar, as “espécies” têm “descrições taxonômicas”. As “plantas” têm histórias.

O “surgimento evolutivo” de uma planta é até explicado pela ciência. Porém, no caso do exemplo acima, uma das histórias contadas pelo seu surgimento é de que havia um menino muito querido e amado por sua tribo. Ele era conhecido por sua beleza, inteligência e coragem. Um dia, enquanto caçava na floresta, o menino encontrou uma serpente venenosa. A serpente o atacou e o menino morreu.

A tribo ficou inconsolável com a perda do menino. Todos choravam e lamentavam sua morte. Tupã, o deus do trovão, vendo a tristeza do povo, decidiu intervir. Ele ordenou que os índios plantassem os olhos do menino na terra. No lugar onde os olhos do menino foram plantados, nasceu uma planta nova. Seus frutos, quando maduros, se assemelham a olhos, com uma parte preta que lembra a pupila e uma parte branca que lembra a íris.

Precisamos de uma visão – e modelos – mais holísticos de representação do fato biológico, que não pode ser representado em sua completude sem o seu componente social. E é aí que essa “máquina de lavar intelectual” me sacode com mais força!

Comentários e contribuições são sempre bem-vindos!

3 respostas para “A planta e a espécie”

  1. Oi Dalcin,
    Suas provocações são sempre instigantes!
    É importante lembrar que nomear tem uma forte relação com poder: nomeia quem tem poder!
    Acredito que para melhor refletir sobre a confrontação entre nomeação na academia e em povos originárias e tradicionais, seria importante antes definir que conceito científico de espécie estamos falando!
    Relaciono abaixo uma referência ainda atual para ajudar na reflexão:
    WHEELER, Q.D; MEIER, R. (Ed.). Species concepts and phylogenetic theory: a debate. New York: Columbia University Press, 2000.

    1. Obrigado Haroldo! Eterno Mestre! Coloquei um link no texto para o outro artigo sugerido, bem interessante!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *