Certa vez resolvi convidar alguns amigos pesquisadores para um bate-papo na minha casa. Ainda era começo de noite e o papo estava animado, quando começamos a sentir um cheiro de algo queimando na cozinha. Quando chegamos na cozinha para averiguar o que estava acontecendo, percebemos que um pequeno incêndio havia iniciado na bancada dos eletrodomésticos!
Enquanto minha cabeça estava processando toda aquela informação, na fração de segundo que se segue, entre a constatação do fato e a percepção da necessidade de uma ação, um dos amigos brada em alto e bom-tom: – VAMOS ESCREVER UM PAPER!
Imediatamente os outros amigos manifestam animado e veemente apoio. De início, um sugere uma divisão de tarefas e, na sequência, um já se oferece para realizar uma revisão bibliográfica sobre incêndios em cozinhas domésticas. Outro já inicia o rascunho de uma introdução, considerando aspectos estatísticos de tais incêndios, como causas mais comuns, distribuição por tipos e tamanhos de cozinha, países com mais incêndios em cozinha; e considerações sobre formas de evitar, formas de combate, questões securitárias, etc. Por fim, outro colega pesquisador já inicia a busca por Journals mais adequados e com um fator de impacto mais significativo.
Enquanto isso, atônito, percebo o fogo se alastrar para outras partes da cozinha, consumindo o armário de pratos, copos e recipientes logo acima da bancada. A fumaça já se espalha pelo apartamento e, enquanto os animados colegas discutem tarefas e seções do paper, e reclamam da fumaça e do cheiro, os vizinhos começam a bater na porta.
Abri a porta e logo um vizinho, de extintor na mão, me trouxe para a cruel realidade de que era preciso fazer algo para resolver o problema, e não apenas, “simplesmente”, relatar o problema em um jornal especializado.
Entramos juntos na cozinha, enquanto a fumaça e o calor ainda tornava isso possível, e com a valorosa ajuda do bravo e prestativo vizinho, acabamos com o incêndio.
Duas fretes de trabalho se estabeleceram: a da “operação rescaldo” e a da “operação publicação”. Porém, sugeri uma pausa para celebrarmos todos juntos, vizinhos e colegas, os encaminhamentos e o fato de ninguém ter se ferido e as perdas e danos terem sido de monta pequena. Brindamos a isso.
Agora, vamos a “motivação e justificativa” do texto.
Em 2017 tive o privilégio de participar de um evento de alto nível, com a participação de pesquisadores renomados, no Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade de Stanford, onde tive oportunidade, inclusive, de fazer uma apresentação. Não vou entrar aqui em maiores detalhes dos participantes nem do “promotor” do evento, mas considero um dos pontos altos da minha modesta carreira.
No último dia do evento, sentados em uma grande mesa em círculo, era a hora dos encaminhamentos e, apesar de ter passado quatro dias discutindo questões e revelando lacunas e demandas de uma área de conhecimento extremamente importante para a biodiversidade, a única proposta que surgiu do grupo, com a entusiástica aprovação de todos (menos deste que vos fala…) foi: Vamos escrever um paper!
Confesso que me senti intimidado, pelo nível das pessoas na mesa, em propor algo de caráter mais prático, como é mais do meu feitio. Porém, também fiquei animado com o encaminhamento do paper, alertando na comunidade acadêmica para as questões de alta relevância que o evento tinha consolidado.
Findo o evento, aproveitei as horas da viagem de retorno no avião para absorver e refletir sobre a experiência, e cheguei a algumas conclusões:
- Antes que os colegas pesquisadores venham me “apedrejar” aqui nos comentários, deixo claro que considero importante a materialização de questões e conhecimento relevante sob a forma de artigo científico. Isso vale, independente da minha frustração com o “modelo de negócio” de alguns Jornais mais renomados, que além de nos cobrar, “vendem” o acesso ao nosso conhecimento por valores, além de absurdos, a meu ver, deixando enormes comunidades de pesquisadores, em especial os de países em desenvolvimento, trancados fora dos seus “paywalls“. Em resumo, lucram com nosso trabalho, e ainda nos cobram!
- Entretanto, defendo que a publicação de um artigo não é mutuamente excludente ao encaminhamento concreto de ações práticas para minimizar ou mesmo eliminar lacunas, mazelas ou problemas de qualidade em dados, informação e conhecimento necessário.
Penso que alguns colegas da minha instituição me olham “atravessado” pela minha relativa “baixa produtividade”, em se tratando de artigos científicos tradicionais. Ando cada vez menos motivado para isso. E dou graças aos Deuses que meu cargo é “Tecnologista” e não “Pesquisador”! Entretanto, penso que minha produtividade anda muito bem, obrigado, com minhas publicações neste Blog, e em material prático e concreto no GitHub, no GitServer institucional, e em meu GiTea pessoal (alguns repositórios ainda privados, com trabalhos em andamento). Sem falar na “co-autoria” em “GitHubs” de alunos, em uma parceria que me dá um enorme prazer.
De qualquer forma, penso que meu papel é sempre dar suporte a alunos e pesquisadores em seus trabalhos, eventualmente merecendo reconhecimento na co-autoria dos seus papers. Estou sempre disposto e muito feliz com este arranjo. Contem comigo!
Comentários e críticas são sempre bem-vindas!
NOTA DE ATUALIZAÇÃO:
Existe “peer review” melhor do que os comentários abaixo?
Vivo essa realidade no meu dia-a-dia corporativo. Na tal carreira em “Y” ou vc é uma coisa, ou vc é outra. E tem que escolher e se comprometer com os resultados de cada escolha. Por que simplesmente não podemos ser quem queremos, contribuir do jeito que queremos. Colaborar, seja da forma que for! O resto é resto. Parabéns pelo texto, meu caro.
Obrigado Carolina!
Dado, vc me representa…rsss. Na perversa relação entre papers e pesquisadores, podemos incluir a mão-de-obra gratuita intensamente explorada na imposta (?) revisão por pares como selo de certificação de qualidade dos artigos
Obrigado meu caro! Sempre pertinente!
Muito bom!
Meu amigo, essa questão tratada no seu blog é muito boa pra discutir num bar.
Faz parte das minhas estratégias para me manter ativo na discussão científica, que não é necessariamente “acadêmica”!
É sempre bom lembrar que vc tem amigos que passaram a vida inteira fazendo ciência e ao mesmo tempo se esforçando para estar no front tentando aplicar suas teorias e ideias na solução dos problemas!
Desconfio que a maioria dos pesquisadores na reunião em Stanford tinha essa pegada, mas da mesmo jeito que você, ficaram intimidados para mudar o rumo da discussão.
Acredite faltou apenas uma pequena provocação pra mudar a situação e ter uma maioria com vc priorizando as duas coisas: o paper junto com uma estratégia de ação!
Desconfio também que estas duas coisas não foram temas do intenso debate regado a vários pints de guinness na noite anterior no The Pub. Uma falha indesculpável!
Gostaria de acrescentar mais um pequeno comentário que vale mais do que todo o blá-blá acima: faltou diversidade nas reuniões em Stanford e na sua casa!!!
Tô aguardando marcar o chopp pra continuar esse papo?
Grande Haroldo! Vamos combinar este papo “over a pint”, com certeza!
Concordo com você! É, sim, importante tangibilizar o conhecimento produzido na academia, para facilitar o seu compartilhamento e evolução. Porém, é fundamental manter como norte o retorno que esse conhecimento dá à sociedade e a facilitação do acesso a ele.
Obrigado pelo comentário, minha querida Silvia!
Produzir artigos é inerente ao ofício de pesquisador. Mas comprometimentos institucionais, colaboração em políticas públicas, conexões com a sociedade e ações diretas para conservação da biodiversidade também se somam a condição de pesquisador e integram a cidadania.
Obrigado, minha “mestra” querida!
Adorei, Dalcin. Este é um dos grandes obstaculos entre a geração do conhecimento e a elaboração da Política Pública
Exatamente! Obrigado Marina!
muito boa abordagem sobre o tema ‘paper’!
Obrigado caríssimo amigo!
Sua colaboração nos nossos trabalhos tem sido excelente e de extrema relevância, principalmente para os alunos! Considero super importante estarmos atualizados ‘tecnologicamente’, sem perder o fundamental – para que serve mesmo nossa pesquisa? Nesse sentido, nossas discussões são sempre elucidativas. Especialmente, agradeço publicamente todo apoio e dedicação com a pós-doutoranda do meu grupo e teremos grande honra em termos sua participação nos manuscritos resultantes.
Obrigado Carine! Eu que fico honrado com a confiança que depositaram em mim. Tenho aprendido muito com vocês. É uma relação muito enriquecedora para mim.